domingo, abril 26, 2009

A difícil opção pelos pobres


Fazer a opção pelos pobres exige um exercício de olhar, e conseguir encontrar esse pobre que a gente tenta buscar. A pobreza pode marginalizar tanto, que se torna impossível perceber o marginalizado, ele se reificou, se tornou coisa nas calçadas e nas ruas da cidade. Sua presença só se torna visível no grito, no grotesco, como que somente pelo absurdo pudéssemos notá-los.

O termo pobre, assim como termo elite, é tão amplo e subjetivo, que acaba por nos confundir, talvez esta questão até seja dicotômica e simples desse jeito, mas as nuances do pobre e da elite, acaba por marginalizar mais uma parte do “pobre” e esconder muito mais o que é “elite”.

Afinal, um trabalhador, um operário, um desempregado pobre, é pobre, mas está dentro do nosso sistema. Possui valor definido, podemos até ter preconceito de classe, mas a todos ocorre uma solução para o problema desta pobreza. É um pobre dentro do sistema, que compartilha os mesmos valores, as mesmas ambições e o mesmo desejo de consumo.

Aí que chego onde a opção pelos pobres se torna mais difícil, quando estamos falando de pessoas tão marginalizadas, cujos valores não são por nós reconhecidos, são estranhos dentro do nosso corpo social, acabam se passando por coisas, porque nos incomoda tentar entendê-los. Transformamos eles em coisas, porque não podemos entender como se transformaram como tal. Estou me referindo aos mendigos que dormem pelas ruas e calçadas desta cidade.

Para mim é tão difícil pensar em uma solução para eles simplesmente porque praticamente não compartilhamos o mesmo mundo; porém, como morador da subprefeitura da Sé, é impossível passar incólume por eles, mesmo que não entendamos sua lógica, sua opção (ou falta dela).

Sua própria existência põe em xeque todo um sistema de valores no qual acreditamos e sua marginalização nos mostra que existe um outro conjunto que também é a nossa sociedade. Se num primeiro momento, o absurdo nos assusta e se transforma num caso de polícia. Numa segunda reflexão, vemos que esta questão é uma questão crucial em vários pontos do nosso olhar para o mundo. Por quê sociologicamente eles se retiraram do “jogo”? Por quê psicologicamente eles não compartilham dos mesmos valores?

Penso que até a forma como ocupamos esta cidade pode ser causa da existência do mendigo. Como morador de uma subprefeitura onde esse problema grita e nos pede pelo menos uma explicação, me sinto somente confuso e tento imaginar teorias mil para que a opção pelos pobres possa alcançá-los também. Ou que eles se deixem alcançar por ela.

sábado, abril 25, 2009

São Francisco pregando aos pássaros

Sempre foi uma mulher católica. Desde os tempos da Campanha Gaúcha até ser esposa de fazendeiro em Rondônia. Já teve recaídas, um tarô, uns búzios, em sua juventude quando tivera mais dúvidas. Hoje, com a idade, tinha mais certezas que dúvidas. Mesmo porque Vilhena não era um lugar que lhe permitia ter tantas dúvidas assim, e suas certezas aumentavam sua fé.

Quando se casou e logo depois migrou, imaginou que poderia dar aos filhos uma vida diferente da que teve. Rondônia era uma terra de oportunidades e seu marido soube aproveitá-las. Orgulhava-se de ter feito sua América, mesmo que esta América fosse tão pequenina como sua São Gabriel natal, ali havia oportunidades, pelo menos para seus filhos. E o que não é um casamento do que poder proporcionar aos filhos o melhor dos mundos? Sentia-se realizada por ser uma mãe que podia dar-se ao luxo de prover o sonho dos seus filhos.

Cláudia nasceu na fase próspera, a menina estudiosa era o orgulho da mãe. Com a mãe aprendera a gostar de ler, o que em Vilhena era a descoberta do mundo. Decidiu ser advogada e para orgulho de toda cidade veio fazer Direito no Largo São Francisco. Faculdade que já havia formado cinco presidentes, segundo lhe contaram.

Para ajudar na adaptação da filha, veio a São Paulo. Procurar apartamento, deixá-lo habitável, permitir que Cláudia conseguisse se sentir em casa e disfarçar seu espanto pela cidade que a envolvia. Maravilhava-se ao observar o trânsito, alguns prédios imponentes; até a decadência lhe parecia bonita, estava num lugar com uma história que era maior que ela, não onde ela fizera a história.

A imagem da faculdade de Direito foi encantadora. Junto à filha conheceu a sala de defesas, majestosa, lembrou-se dos livros que lera no colegial, da glória de se estudar Direito em São Paulo. A faculdade era um ponto que sobrevivia a decadência do lugar, era um lugar que a história não havia abandonado e isso a impressionava.

Domingo é dia de missa. Não importa onde você esteja, é dia de missa. Lembrou-se da Igreja de São Francisco ao lado da faculdade, e com sua roupa de missa foi até lá, Cláudia tinha saído com suas novas amigas e decidiu que enfrentaria a cidade sozinha. Informaram-na o horário errado, e ela acabou chegando muito cedo. Sorte. Pôde ver toda a Igreja, se sentia numa igreja barroca mineira. Anjos, santos com olhares penetrantes, uma Nossa Senhora das Dores tão linda e dolorida como jamais vira. Ajoelhou-se e rezou. Andou pela Igreja e percebeu que o número de mendigos que dormiam sob as arcadas era muito grande, assustou-se e voltou à Igreja, era quase a hora da missa e nunca tinha visto tão poucas pessoas numa celebração.

Sentou-se incomodada num banco vazio, estava inconformada de ter feito esta opção. Aquele domingo não era um domingo bonito, mas deveria ter ficado em casa, ou ido a uma Igreja num lugar menos decadente. Sentiu-se caipira por ter ido a missa e por ter medo dos mendigos.

Um frei bem simples entrou na Igreja sob o canto solitário de um ajudante. A missa começou e de repente, com a chuva fina que caiu sobre a cidade, a Igreja, como por um milagre, começou a encher. Antes do ato penitencial já estava tomada pelos mendigos das arcadas. Alguns rezavam junto com o frei, outros conversavam, alguns embriagados diziam palavras que ela não conseguia entender. Vieram as leituras e tentava se concentrar nas leituras, mas tinha medo, medo inconsciente, medo do desconhecido, da enrascada que se metera.

A homilia foi sobre a recusa de Tomé em acreditar na ressurreição sem ver as chagas de Cristo, o frei insistiu que bem-aventurados aqueles que creram sem ter visto, e pediu para que todos meditassem sobre o tamanho de sua fé. Perguntou até onde sua fé seria capaz de os levar. Veridiana não conseguia tirar o olhar de um mendigo com um colete militar que, embriagado, soltava palavras como respondendo ao frei. Quando o padre disse que a fé é a vacina do medo, sentiu-se sem fé, estava amedrontada.

No ofertório sentiu-se constrangida ao entregar seus dez reais habituais à Igreja enquanto a multidão de mendigos fazia comentários sobre a coleta. “Receba o Senhor por suas mãos este sacrifício, para a glória do Seu nome, para o nosso bem e de toda santa Igreja”. Teve vergonha em dizer esta frase que sempre lhe saiu automática. Afinal, qual era seu sacrifício? Estar junto aos mendigos? Mas essa era uma obrigação e não um sacrifício. Durante a consagração, o bêbado de colete militar comentou sarcástico que agora sim todos eram irmãos.

O canto de comunhão era um dos mais bonitos que já ouvira, já o havia cantado no coro da sua Igreja, e, no entanto, cantado pelo ajudante parecia uma ladainha de procissão. Falava sobre a vinda gloriosa e a ressurreição dos que creram. Na comunhão, partilhou a fila e a hóstia com os mendigos que agora lhe pareciam como parte integrante da Igreja. No abraço da paz, desejou-lhes a paz de Cristo e deu-lhes a mão, automaticamente.

Quando a missa acabou, pôs a bolsa embaixo do braço e atravessou o campo de refugiados com que se assemelhava o Largo de São Francisco, por sorte havia um ponto de táxi na praça e logo conseguiu um carro. Dizia a si mesma que jamais voltaria àquela Igreja. Mas sua fé era incapaz de levá-la a uma igreja como aquela? Quando o táxi parou num sinal fechado, um menino de rua conseguiu abrir a porta do carro e levar sua bolsa. Seu medo se concretizou. Como era fácil ser católica em Vilhena!

domingo, abril 19, 2009

Caminhemos


Sabe quando você escuta uma música e não consegue se desligar dela? Pois é, aconteceu comigo na quinta-feira e não consigo parar de ouvir uma música. Embora a música seja interessante do jeito que é, adoraria trocar-lhe duas palavras, e acho que aí sim ela ficaria bem interessante.

É desnecessário saber que ouvi essa música na voz da Vanusa, e que sabe-se lá como eu cheguei nela, mas não julguem a música pela cantora, depois descobri que a música é até bem velhinha, até o Nelson Gonçalves gravou em dueto com a Maria Bethânia, mas eu ainda prefiro ouvi-la na voz da Vanusa.

Caminhemos
(Herivelto Martins)

Não, eu não posso lembrar que te amei,
Não, eu preciso esquecer que sofri,
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois!

Vida comprida, estrada alongada.
Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada...
Vou indo, caminhando
Sem saber onde chegar
Quem sabe na volta
Te encontre no mesmo lugar!

Do jeito que a música está, me dá a idéia de alguém infeliz numa relação, mesmo assim inseguro se deve ir ou não, perdido no mundo, e o “quem sabe na volta te encontre no mesmo lugar”, pode parecer que a pessoa decidiu que a volta era a melhor das opções (que seria um final muito Alcione para a Vanusa) ou que o sujeito da canção evoluiu, cresceu e o que ficou estagnou (que seria uma vingança bem executada).

No entanto, ao escutar a música, depois de algumas vezes, eu trocaria duas palavras:

Caminhemos

Não, eu não posso lembrar que te amei,
Não, eu preciso esquecer que sorri,
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois!

Vida comprida, estrada alongada.
Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada...
Vou indo, caminhando
Sem saber onde chegar
Quem sabe na volta
Me encontre no mesmo lugar!

Com as duas alterações acho que seria uma crise existencial muito bem cantada. O sujeito da música está numa relação boa, no entanto precisa repensar a sua vida e parte “à procura de alguém ou a procura de nada”, ou de algo, e quem sabe posteriormente a toda esta busca perceba que estava tudo bem.

Afinal, quem nunca teve dúvidas desta natureza, e percebeu que estava tudo ok depois?

A propósito, estava num bar meio decadente onde uma dupla sertaneja fazia cover de outras duplas sertanejas, quando eles tocaram Borboletas de Vitor e Leo que diz coisa bem parecida, mas sobre a ótica de quem ficou. Acho a parte de quem foi mais corajosa, mas no final fiquei com as duas músicas na cabeça!

quinta-feira, abril 16, 2009

Lula, FHC e a relação Estado-Sociedade.

No discurso de despedida ao Senado, o ex-presidente Fernando Henrique diagnosticava o fim de um ciclo de desenvolvimento econômico, baseado no Estado provedor de infra-estrutura e monopolista deixando às empresas privadas a industrialização por substituição de importações. Este ciclo econômico, característico da Era Vargas, era marcado pelo intervencionismo do Estado em setores estratégicos e um controle sobre as tarifas e câmbio que criava a condição propícia para a industrialização. E esse controle, não era só sobre a economia, mas transpassava toda a sociedade, já que a estrutura sindical era (e ainda é) controlada pelo Estado, e na maior parte do período onde vigorou este pacto desenvolvimentista estávamos sobre regimes de exceção, o Estado Novo e o Regime Militar.

Neste discurso, o ex-presidente afirmava que este ciclo havia se encerrado e era necessário superar a Era Vargas, já que o intervencionismo estava sufocando a eficiência de setores que viriam a ser estratégicos num novo modelo de desenvolvimento. Além disso era necessário superar o autoritarismo do período. Reforçando as instituições e transferindo o dinamismo da atividade econômica dos planos do governo para a iniciativa privada, inaugurando uma nova fase da relação Estado-Sociedade.

“No ciclo de desenvolvimento que se inaugura, o eixo dinâmico da atividade produtiva passa decididamente do setor estatal para o setor privado. Tenho repetido à exaustão, mas não custa insistir: isto não significa que a ação do Estado deixe de ser relevante para o desenvolvimento econômico. Ela continuará sendo fundamental. Mas mudando de natureza”.

O Estado produtor direto passa para segundo plano. Entra o Estado regulador, não no sentido de espalhar regras e favores especiais a torto e a direito, mas de criar o marco institucional que assegure plena eficácia ao sistema de preços relativos, incentivando assim os investimentos privados na atividade produtiva. Em vez de substituir o mercado, trata-se, portanto, de garantir a eficiência do mercado como princípio geral de regulação”.
Este era o norte do governo Fernando Henrique, ao buscar eficiência, buscou-se na iniciativa privada sua eficiência, e trouxe para o governo, representante da sociedade, o papel de regulador. Não só da atividade econômica, mas também como marco de estabilidade jurídica e fiscal.

O projeto que venceu as eleições em 1994 e 1998 foi derrotado nas urnas em 2002 por uma sombra de projeto nacional, que volta à Era Vargas nos seus abusos, e por não abandonar de vez o plano de 1994 e não traçar outro, ficou no meio do caminho, incapaz de exigir a eficiência dos serviços públicos concedidos, já que os cargos nas agências de regulação, foram partidarizados e enfraquecidos pelo governo que se pretende ser forte como outrora.
Quem fica no meio do caminho, saiu da estabilidade do começo e não atingiu o que se pretendia no fim, nem houve uma rediscussão deste processo, já que para algumas platéias (encontros de esquerda, trabalhadores e palanques) se evoca a Era Vargas, e enquanto em outros (empresários, reuniões internacionais) se lembra o novo marco instaurado em 1994.

O resultado final é o que a gente pode ver na greve da Supervia no Rio de Janeiro. Temos uma greve por melhores condições de trabalho num dos pontos mais sensíveis daquela cidade, deixando ilhados usuários que precisam do serviço e pagam por ele, sendo mal tratados pelos grevistas, que não conseguem enxergar que esses usuários são seus aliados, não inimigos.
Esse é o retrato do governo Lula e dos seus alinhados. O Estado do Rio de Janeiro, quando concedeu o serviço, criou uma agência reguladora, que provavelmente deve estar lotada de indicações do amplo espectro político retrógrado que representa o governador Sérgio Cabral. Esta agência não fez o dever de casa de fiscalizar a concessão, nem tampouco puniu a concessionária pela não-execução do serviço. Também não punirá os grevistas. Já que para ambos há um tipo de discurso, contraditório, que deve ser mantido para garantir as eleições de 2010.

quarta-feira, abril 08, 2009

A política nossa de cada dia


Quando Chirac disputou sua reeleição à presidência francesa, pôs como uma de suas cinco metas a redução do número de acidentes de carro. Não me lembro das outras quatro, mas o fato que uma das metas fosse a redução do número de acidentes de carro me causou um impacto impressionante. Era a política chegando ao dia-a-dia das pessoas.

Num primeiro momento pode parecer que uma meta como a redução do número de acidentes de carro seja uma meta simplista e pequeno-burguesa, no entanto, sua efetivação produz transformações imensas em toda a sociedade, desde a criação de carros mais seguros até uma nova política de educação no trânsito. Implica na sociedade aceitar seu alto grau de motorização, provoca reflexões sobre os aspectos ambientais disso tudo. O mais interessante é que o todo o processo começa numa coisa corriqueira, muito mais assimilável que superávit primário ou responsabilidade social, e por ser corriqueira pode abranger um número bem maior de pessoas que convivem com este problema. Provoca discussão na sociedade que empenhada acompanha como seus representantes se portaram perante esta discussão.

A lei antifumo é um destes casos que merecem ser analisados sob essa ótica. Além de ser um assunto mobilizador, é alvo de lobbies fortíssimos, seja da associação de bares, seja da indústria do fumo. Provoca uma discussão acalorada sobre o peso do tabagismo na saúde pública e suas implicações orçamentárias, mas também abre um espaço fantástico para se discutir a liberdade individual que é pilar da democracia. Não é uma simples lei, a partir dela, essa tênue linha entre a saúde pública e a liberdade individual começará a ser traçada. A própria discussão da lei é um exercício fantástico de democracia.

Não foi à toa que comparei Chirac e o Serra. Acho que ambos representam um movimento onde a ação nasce não de vanguardas e construções políticas idealizadas, mas sim de uma relação entre Estado e sociedade que se media pela política. É muito claro, pelo menos para mim, que somente pela política e pelo envolvimento da sociedade na política que se poderão conduzir as demandas difusas da sociedade moderna.

Apóio a lei, e acho que deveríamos discutir mais leis deste tipo.

terça-feira, abril 07, 2009

Tempo Livre


Será esse o tal ócio criativo?

As vezes fico um pouco envergonhado de dizer que tenho tempo livre. Tenho muito tempo livre. Acho que isso é minha maior contradição neste tal mundo globalizado. Como num mundo com tanto acesso à informação, com novas formas de comunicação e vivendo numa cidade global pode se queixar de tempo livre?

Eu me queixo, mas em silêncio. Ninguém tem tempo livre, todos correm contra o tempo enquanto eu passeio pelo tempo, matando tempo.

Tempo livre é um tabu com o qual tenho lutado. Primeiro para reconhecer que isso não seja um problema, depois para que as pessoas não me vejam como uma aberração e principalmente para aprender a desfrutá-lo.

Tomo um banho demorado, leio livros que outros indicam, escrevo cartas, telefono e penso na vida. Muitas vezes tudo isso gera uma vontade de mundo e aí nem sempre os outros estão com tempo para gastarmos um tempo junto. Então escrevo posts, outras cartas e tomo mais um banho.

É preciso paciência e serenidade para lidar com o tempo, mas acho que este tabu está sendo quebrado.

sexta-feira, abril 03, 2009

Pergunte ao Pó – John Fante

Descobri o livro lendo outro livro. Li Caio Fernando Abreu comentando dele em várias cartas e resolvi lê-lo para saber porque ele se impressionou tanto pelo livro. Acabei eu bem impressionado.

Boa essa sensação de entender um personagem, de percebê-lo, de senti-lo, e assim me tornei amigo do Arturo Bandini e pude entender toda sua vaidade e ao mesmo tempo toda sua entrega, misericórdia em relação à Camila. Ao mesmo tempo se sentir e viver como se fosse um grande escritor para depois deixar tudo de lado para servi-la, cuidar dela. Sem antes passar por toda espécie de contradição de sentimento. Contradições católicas enraizadas, seja no personagem, seja no autor. A transformação de um flaneur num bom samaritano.

Fiquei impressionado com os diálogos internos e devaneios, como a gente pensa, e como a gente pensa coisas tão irreais, atos falhos no nosso consciente que o autor conseguiu captar muito bem.

Não tem como não pensar no “Quem ama a sua vida não terá a vida verdadeira; mas quem não se apega à sua vida, neste mundo, ganhará para sempre a vida verdadeira” (Jo 12,25), mas também “Não sejais vagarosos no cuidado, mas sede fervorosos no espírito” (Ro 12,11). Enfim, estas contradições que movem o mundo e movem Arturo Bandini.

Amanhã vou pegar o DVD, embora todo mundo tenha criticado a história, enquanto lia só conseguia ver o Colin Farrell e a Salma Hayek.

quarta-feira, abril 01, 2009

Qué se doble, pero no se rompa!

Se tenho uma certeza na vida é a que se fosse argentino seria radical. A Unión Cívica Radical é um dos partidos que enxergo mais coerente na defesa da democracia. Não é a toa que é Radical e não é a toa que um dia já se chamou Unión Cívica Radical Intransigente.

Nasceu junto com a Revolução do Parque, que é para a Argentina o que foi todo o tenentismo no Brasil, só que ao invés de acabar na Ditadura Vargas, trouxe a democracia para a Argentina, uma democracia radical, que depois acabou eclipsada por vários golpes militares e pela ascensão do Peronismo e todas suas vertentes. No entanto, sempre que se pretendia a normalidade no país, os Radicais chegavam ao poder. Quando as revoluções libertadoras e as voltas sebastianistas levavam o país à ruína, lá estavam os radicais em defesa da democracia. Pode até ser uma democracia burguesa, partidária. Não é a toa que é, ou foi, conhecida como o partido das classes médias.

Insurgiu-se pelo voto secreto e fez de Yrigoyen o primeiro presidente eleito em eleições secretas. Pode-se dizer que foi o primeiro presidente não aristocrático.

Num governo radical conseguiu-se uma das experiências mais radicais e democráticas da gestão da universidade pública. A Reforma Universitária por Alvear, deu acesso a todos os argentinos a universidades. Tanto que na Argentina não existe vestibular, somente em algumas escolas onde o grande número de alunos prejudica o ensino é estabelecido um exame, que ao contrário daqui, admite todos os que passam pela nota limite, e não somente preenche vagas pré-estabelecidas.

Governou a Argentina por seis vezes, sendo que cinco vezes foi derrubada do poder por golpes militares (Yrigoyen, Frondizi e Ilia) ou por tumultos e crise (Alfonsín e De la Rua). Ganhou a fama de nunca terminar um mandato.

Estou escrevendo hoje por causa da morte de Alfonsín. Após o violento golpe que se seguiu ao desastre da volta de Perón ao poder, depois da radicalização e do terrorismo que assolou o país, ao assumir criou o juízo das juntas e uma comissão para unificar o país. Não usou o golpe militar como maneira de manobra para seu governo. Aproximou-se do Brasil e criou e embrião do Mercosul. Infelizmente pela crise econômica e pela oposição ferrenha dos peronistas, numa saída para pacificar o país, renunciou seis meses antes de terminar o mandato passando o poder a Ménem e era Menem, cuja política econômica se baseou na mesma plata dulce dos tempos da ditadura.

Talvez até pela intransigência, hoje a UCR se dividiu, sobrevive como legenda, mas dela surgiram outros partidos, a direita e a esquerda. Mas a UCR sim é um partido que está ligado a democracia, a legalidade e principalmente a um espírito desenvolvimentista.
O título é a frase da carta de suicídio do fundador da UCR, Leandro Além; que talvez tenha sido levada a ferro e fogo por Alfonsín, que atuava no partido até sua doença e morte